Doce lembrança

08:30:00




Das lembranças felizes da minha infância, guardo com todo carinho os momentos vividos com meu vozinho Jorge. Nas tardes de domingo, sentadinho sobre uma pedra, ao lado do portão, ele aguardava ansioso os netos, filhos, genros e noras. E o portão estava sempre aberto e ele sempre a nossa espera.
Descíamos do carro já com mil vontades. Vô, vamos pescar? Lá ia ele até o seu ranchinho, pegava os anzóis e com sua enxada na mão, ia em busca de minhocas pra nossa pescaria. Em minutos, já estavam os netos ao redor do lago com seus anzóis.
Vô, queremos chupar cana. Com facão não mão e uma cambuquinha de Doriana, ele descascava e cortava em retângulos milimétricos aqueles pedacinhos de açúcar em formato de cana.
Vô, queremos jabuticaba. Com uma escadinha pequena e um pote enorme, ele subia no pé e em alguns minutos descia com o pote cheinho de baguinhas roxas.
Homem de poucas palavras, pra ser bem sincera, tenho pouca lembrança do tom da sua voz. Lembro apenas do que ele fazia por nós. Trocou os discursos, as palavras rebuscadas pela linguagem da alma. Falava com o sorriso, falava com sua vontade incansável de acolher e agradar a todos, falava com os seus olhos que brilhavam quando a casa estava cheia de gente. Foi para nós um grande mestre...
Não precisou de livros, quadro negro nem tão pouco canetas, nos ensinou através do seu exemplo. Nos falou de amor, de simplicidade, de humildade e de acolhida, sem utilizar-se de grandes pensadores ou teorias do comportamento.
Seus gestos eram de um homem simples. Vestia uma calça social azul ou marrom e uma camisa de botão listrada. Vestia-se também de muito amor e afeto. Doces lembranças envoltas em um misto de saudade mas também de gratidão.
Gratidão pela sua passagem nem tão longa por aqui. Gratidão pelos seus puros e simples ensinamentos. Gratidão por termos tido a oportunidade de conviver com esse vô tão amado e querido.
Podemos até esquecer do que as pessoas nos dizem, mas não esquecemos daquilo que elas nos fazem. Quase 20 anos após sua partida e eu ainda posso lembrar do gosto que tinha aquela cana tão bem cortadinha e descascada. Ainda lembro dele nos levando até o portão e acenando com os olhos cheios d'água. Lembro do que ele foi para mim, lembro do quanto ele tornou a minha infância mais doce e cheia de alegria.
Partiu precocemente, ainda cheio de vontade de viver. Temia a morte. Queria continuar pescando com os netos, cortando cana, apanhando jabuticabas, plantando aipim, roçando pastos... mas partiu. 
Deixou a doce lembrança de um senhorzinho com sorriso no rosto. Seus ensinamentos não foram parar numa enciclopédia, mas ficaram no coração, que é lá que eles devem morar.

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Quem sou

"Sou menina levada, princesa de rua, sou criança crescida com contas para pagar. E mesmo pequena, não deixo de crescer. Trabalho igual gente grande, fico séria, traço metas. Mas quando chega a hora do recreio, aí vou eu...
Beijo escondido, faço bico, faço manha, tomo sorvete no pote, choro quando dói, choro quando não dói. Quer me entender? Não precisa."


Fernanda Mello

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